Depois da estreia surpreendente em
Aurora Boreal, Rebecka Martinsson, a protagonista das tramas de Asa Larsson regressa com Sangue Derramado. A acção do novo livro de Larsson ocorre dezoito meses após a trama passada e como tal, Rebecka ainda se sente fragilizada dados os acontecimentos e o desfecho do livro anterior.
Mildred Nilsson tem um papel bastante activo na igreja. Alguns populares adoram-na, outros nem por isso... Até que Mildred aparece morta e é a advogada Rebecka Martinsson a inteirar-se da investigação, juntamente com os polícias Anna-Maria Mella e Sven-Erik Stalnacke.
À medida que a investigação decorre, há inúmeros flashbacks que relatam acontecimentos protagonizados pela própria Mildred, que deixarão o leitor estrondosamente surpreendido. É através desta forma que começamos a perceber como são as personagens mas até ao final do livro, estaremos longe de imaginar o que realmente aconteceu a Nilsson. Inúmeros segredos sobre esta mulher são desvendados num timing quase mágico. À medida que nos aproximamos do clímax da trama, esta torna-se mais emocionante e imprevisível, prendendo-nos ao livro até que se torne impossível não o terminar de imediato.
Os mais cépticos poderão assumir que a autora não foi muito original. Afinal também no primeiro livro a investigação prendia-se num líder religioso encontrado morto, Viktor Strandgard. No entanto, a minha opinião é que a autora se envolve muito no tema da religião. O que será mais controverso do que líderes religiosos vítimas de homicídio?
Achei este livro um tanto ou pouco similar ao livro "A Raiz do Ódio" de Anne Holt. Ora vejamos, uma mulher ligada à religião que é morta: check; a controversa abordagem da temática da homossexualidade: check; a investigação do crime como fundo da história pessoal do investigador (se no caso anterior era o casal Stubo, aqui é Martinsson). Dado o curto intervalo que espaçou estas leituras, fez com que pensasse em ambos os livros, e estabelecesse por diversas vezes um paralelismo entre as autoras nórdicas. Afinal Mildred Nilsson e Eva Karin Lysgaard são personagens bastante similares, dado o seu estatuto social e até mesmo as suas caracterizações. Por isso não posso deixar de aconselhar aos fanáticos dos policiais nórdicos, que estendam o intervalo de leitura entre Larsson e Holt a ponto de garantir uma melhor apreciação (e distinção) entre estes livros.
Não deixo de sublinhar o quão interessante é ler um policial nórdico. Penso que os escandinavos têm uma perspectiva diferente sobre a criminologia face aos livros americanos mais vistos por aí. Além disso, querem melhor do que avaliar as diferenças culturais entre os nórdicos e os mediterrâneos? Curiosa a gastronomia sueca, que apresentam deliciosos pratos confeccionados com carne de rena, por exemplo. Mas a leitura de um livro com origem escandinava associa um senão: a complexa toponímia dos locais e personagens. Achei particularmente difícil assimilar os nomes dos locais suecos por onde decorria a acção, devo confessar, mas nada que um rascunho a lápis não facilite.
Um livro cujo arranque é lento relativamente a Aurora Boreal. Talvez explique o maior número de páginas que sustenta esta história. A autora perde-se em pormenores, relativos ao extenso elenco de personagens. Ainda assim, não recomendo a leitura deste livro sem previamente ler-se Aurora Boreal. São fantásticas as descrições das florestas e bosques suecos envoltos naquele frio gélido.
A trama, dotada de grande mistério e suspense, vê estas componentes suspendidas quando se interpõem passagens com episódios relativos a uma loba, de seu nome Patas Douradas. Estes relatos incidem sobretudo na vivência do animal e do seu clã nos bosques suecos, e o que implica para garantir a sua sobrevivência. Curioso é perceber que há todo um movimento dos populares para a conservação deste animal, tão semelhante quanto os mediterrânicos se assegurarem da não extinção de espécies semelhantes aqui na Península Ibérica.
De facto, a autora revela uma preocupação acima do comum dado o género do livro, com os animais. No entanto, esta apreensão perde o seu sentido quando no final, o leitor é confrontado com uma passagem terrorífica de violência relacionada com cães domésticos. O desfecho é tão impressionável como imprevisível. É no final, que são juntas as peças do puzzle e o leitor conhece assim, as relações familiares entre as demais personagens, que até ao momento, aparentemente nada as mantém ligadas. A autora vai assim, além de um simples policial, revolvendo emoções das personagens através não só das suas tragédias como das vitórias pessoais.
Em relação às personagens, já as conhecia, do livro anterior. Gosto de Rebecka Martinsson, que sendo advogada envolve-se em demasia nas investigações criminais. Uma mulher frágil mas que de certa forma mostra alguma destreza nesta função. Pelo menos mais do que os polícias, que numa situação de alta importância, se esquecem de um mandato para revistar uma casa. Anna-Maria Mella, que estava grávida na anterior narrativa, vê a sua vida pessoal um pouco diferente. No entanto não é dado grande ênfase nesta componente na história, a autora cingiu-se apenas ao fundamental.
Sangue derramado de título, mas o livro é um dos mais despercebidamente sangrentos que li até à data. Ainda assim não deixo de recomendar este grande policial aos fanáticos da literatura do género escandinava, que está mais que provada, ser uma das mais arrebatadoras de sempre. Muito mistério, alguma acção, twists não equacionados e uma passagem perturbadora garantem um excelente momento de leitura!